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O infarto da alma (fragmento)*

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O infarto da alma (fragmento)*

Diamela Eltit

(Santiago de Chile, Chile, 1949)

Dana Whabira

Diário de viagem

(Sexta-feira, 7 de agosto de 1992)

Dias antes, vi as fotografias.

Agora viajamos com Paz Errázuriz rumo ao hospital psiquiátrico do vilarejo de Putaendo, um hospital construído nos anos quarenta para dar assistência aos enfermos de tuberculose que, após a massificação da vacina preventiva, foi convertido em manicômio, recebendo pacientes de diferentes centros psiquiátricos do país. Doentes residuais, em sua maioria indigentes, alguns sem identificação civil, catalogados como NN2. Durante a viagem, a paisagem vai se tornando claramente cordilherana, a luz atravessa tudo quando surge o imponente edifício recortado contra a cadeia de montanhas. A duas horas de Santiago, a construção me parece urbana demais, como se um pedaço de cidade tivesse fugido – com um jeito de fuga psicótica – para formar de maneira solitária uma cena surpreendente.

 

A grade, a guarita depois dos jardins, na parte de trás do edifício. Ao atravessar a grade, vejo os asilados. Não acho seus corpos e nem seus rostos inesperados (não os acho inesperados, pois já disse que dias antes vi as fotos), apenas me desconcerta a alegria que os percorre quando gritam: “Tia Paz”, “a tia Paz chegou”. Como se eles mesmos não pudessem acreditar, beijam-na várias vezes e não param de abraçá-la, e a mim também beijam e abraçam, homens e mulheres diante dos quais tenho que dissimular a profunda comoção que me provoca a precariedade dos seus destinos. Não os seus rostos nem os seus corpos, me refiro ao nosso destino comum e protelado.

O que seria descrever com palavras a visualidade muda dessas figuras deformadas pelos fármacos, suas difíceis manias corporais, o brilho ávido daqueles olhos que nos observam, nos atravessam e deixam entrever pupilas cujo horizonte está bifurcado?

De que vale repetir que seus corpos transportam tantos sinais sociais que claudicam, se contorcem, que pendem perigosamente para um lado, enquanto deambulam deleitados ao lado de Paz Errázuriz, agora sua parente?

A tia que tira fotografias que provam, até para eles mesmos, que estão vivos, que apesar de tudo conservam um pedacinho de ser, ainda que residam como doentes crônicos no hospital mais lendário do Chile, o manicômio da cidade de Putaendo, agora chamado Philippe Pinel. Leio este nome escrito na fachada do edifício. Estamos rodeadas de loucos num desfile que poderia ser cômico, mas, claro, é irremediavelmente dramático, deveras dramático, para além do riso, dos abraços, dos beijos, mesmo que uma mulher me segure pela cintura, ponha sua boca em meu ouvido e me diga pela primeira vez: “Mãezinha”. Agora eu também faço parte da família; mãe de loucos.

Dessa maneira entramos no edifício, abertas à profundidade da nossa própria insânia, cercadas pelos corpos materiais que me parecem cada vez mais permanentes, incluindo todo o notório desvio de suas figuras.

Quando cruzamos a porta, experimento um novo impacto: escuto algo parecido com um canto que se estende e cruza todo o pavilhão, uma música executada com o movimento febril e contínuo da língua que me faz evocar os sons dos berberes, os nômades do deserto, de um deserto que não conheço, de um som que retenho de maneira vaga desde que vi não sei que filme, desde não sei qual gravação esquecida. Recordo a música do deserto impressionada pela potência da garganta que me conduz até a primeira escada, que desemboca no primeiro corredor do hospital, a primeira janela, que me transporta diretamente ao primeiro sinal da clausura.

Paz Errázuriz conhece bem os pavilhões, quer dizer, o pavilhão cinza, o verde. Não, não sei, não guardo as cores que dão nome às seções. É necessário notificar as autoridades sobre a nossa presença. Vamos até os escritórios e entramos na administração. O psiquiatra nos recebe e fala sobre uns quinhentos pacientes (ele realmente disse quinhentos?). Paz Errázuriz já esteve ali tantas vezes que não é necessário recorrer a maiores formalidades, temos livre acesso às diversas dependências. Porém, ao realizarmos o protocolo de autorização, o subdiretor nos dá uma notícia curiosa: neste mesmo dia o hospital cumpre mais um ano de existência. Compreendo as bexigas coloridas nos corredores, entendo a compostura na indumentária do médico e, ao entender que estávamos à beira de uma comemoração, fico confusa. Os funcionários do hospital, as autoridades da região, alguns vizinhos convidados se reuniram ao meio-dia para dar início às festividades. O médico nos convida para a festa. Mas o que nós temos para festejar? A meio caminho, Paz Errázuriz e eu nos encontramos no limite, enfrentamos a disjuntiva de ter que cruzar continuamente as fronteiras. Temos que assumir a encruzilhada de estar divididas entre os funcionários e os pacientes e, tocadas por uma súbita e semelhante resignação, nos apressamos em dizer que sim, sim, enquanto deixamos o escritório. Sei que em algumas ocasiões fica difícil entender cabalmente a diferença que existe entre a sorte e a predestinação.

Quando saio do escritório, o mundo parece partido em dois. Como se todo o mundo estivesse dividido em dois blocos: os funcionários e os pacientes. Um mundo quebrado que só permanecia conectado pela luz filtrada pelas janelas. Os asilados tomam sol. Começamos nossa peregrinação, que não é mais do que subir e descer escadas, subir e descer, cercadas pelos corredores, pelas camas já clássicas dos hospitais públicos, pelos pacientes que continuam nos beijando e beijando e, entre os repetidos beijos, aparece em mim o signo do amor. No fim das contas, viajei para viver a minha própria história de amor. Estou no manicômio por meu amor à palavra, pela paixão que a palavra ainda me provoca.

E quando já não cabe indagar sobre o desprestígio desses corpos, quando sei que jamais conseguiria abarcar minimamente o curso de uma vida humana, quando estou certa de que tenho apenas algumas palavras insuficientes, aparece o primeiro casal de namorados.

Paz Errázuriz nos apresenta. Caminhei o tempo todo com o peso de uma mulher que me abraça pela cintura, uma mulher que, quando paro, põe a cabeça em meu ombro ou esfrega a cabeça contra meu pescoço e diz em sua meia língua: “mãezinha”, “mãezinha”, para mim, como se eu tivesse criado uma filha mimada. Essa filha minha quase não fala. Exige, através de uma linguagem mímica, que eu cumpra com as suas necessidades. Quer meus sapatos, meu relógio, minha bolsa, quer quase tudo o que tenho. Olho para a minha filha, que idade ela tem, penso que cinquenta anos, não, sessenta anos, não, quarenta. Por que me preocupo com esse detalhe? Cumprimento o primeiro casal. Penso seriamente sobre o amor. A verdade é que não quero pensar nisso.

Mais adiante, de corredor em corredor, de degrau em degrau, em meio aos pátios, cumprimento o segundo, o terceiro, o décimo casal. São tantos apaixonados que até perco a conta. “Ele me dá chá e pão com manteiga”. “Eu cuido dela”. Se alimentam, se cuidam. Se alimentam um pouquinho e se cuidam como podem, e de maneira radiográfica vejo a grande metáfora que todos os casais confirmam; a vida inteira anexada ao outro por uma xícara de chá e um pão com manteiga. Eles estão vivendo uma extraordinária história de amor, enclausurados no hospital; crônicos, indigentes, cercados, mancos, mutilados, com o olhar fixo, caminhando pelas dependências, levando nas costas todos os seus pertences. Chilenos, esquecidos por Deus, entregues à caridade rígida do Estado.

Sentado num banco do corredor, um dos namorados abre a camisa, desabotoa a calça e nos mostra o curativo que protege uma operação recente.

Está absorto em sua bandagem: “Úlceras”, diz. E continua olhando a bandagem, e logo aponta para o estômago com o orgulho de um ferido de guerra. Sua namorada ri como se estivesse contente porque o seu homem tem algo para mostrar. Mas ela mesma (invejosa?, ciumenta?, nostálgica?, acusadora?) mostra prontamente a sua própria cicatriz.

 

Na altura do umbigo, desce uma cicatriz. Compreendo neste instante que estou olhando para a marca histórica e obrigatória que se oculta no corpo de algumas mulheres dementes, dessas mulheres que perderam todas as batalhas familiares. Quando nos mostra sua cicatriz, o que na verdade expõe é o rastro da sua esterilidade, da operação antiga e sem consentimento que cerceou para sempre a sua capacidade reprodutiva. Por causa de sua loucura, agora seus filhos só transitam em sua mente quando, obstinada, contrariando a própria anatomia, afirma que recentemente esteve grávida: “Gorda”, ela diz, “de dois, de oito meses”. Diz isso com a calça aberta e o olhar absorto, enquanto seu namorado, com a calça também aberta, acaricia a bandagem suavemente. Perdidos em devaneios distintos, consumidos por um delírio diverso, permanecem sentados no banco, presos a uma proximidade inexplicável, conectados estreitamente por uma faca que lhes passaram no estômago, que os torna um para o outro, o único para o outro, porque os dois, seja pela operação ou pela clausura definitiva, enfrentam o fim de sua espécie genética. O que eu digo, ou deveria dizer, é dizer que essa operação me oprime, me fere. Mas, claro, se trata de um amor total, único, um amor louco. Breton inunda a minha memória e me esqueço dos meus próprios pensamentos.

Confundo os casais.

Há uma grande quantidade de namorados. Há apaixonados? Margarita com Antonio, Claudia com Bartolomé, Sonia com Pedro, Isabel e Ricardo, e assim vai, e assim por diante. Qual é a linguagem deste amor?, me pergunto enquanto os observo, pois nem palavras completas têm, só possuem casualmente o extravio de uma sílaba terrivelmente fraturada. Então, qual é o acordo?, a partir de qual instante?, qual estética amorosa os mobiliza? Vejo diante de mim a matéria da desigualdade quando eles rompem com os modelos estabelecidos, presencio a beleza aliada à feiura, a velhice anexada à juventude, a relação paradoxal do manco com a caolha, da letrada com o analfabeto. E aí, nessa descompostura, encontro o cerne do amor. Compreendo exemplarmente que o objeto amado é sempre uma invenção, a desprogramação máxima do real e, nesse mesmo instante, devo aceitar que os apaixonados possuem outra visão, uma visão misteriosa e subjetiva. No fim das contas, os seres humanos se apaixonam como loucos. Como loucos.

“Anteontem e ontem à noite e hoje de manhã... Anteontem e ontem à noite e hoje de manhã...” canta uma das asiladas pelos corredores do pátio de uma das seções.

Canta uma toada, uma toada que me parece simétrica ao seu corpo que se dilata, que se contorce devido a uma paralisia lateral, um corpo parcialmente impedido, mas não por isso menos afetuoso. Canta com uma voz sentimental que me emociona. Emocionada pelo seu canto, cumprimento o último casal da manhã. Não se lembram há quanto tempo estão juntos: “Muito... muito”, dizem. Não sabem ver a hora, não sabem ler, não sabem há quantos anos estão internados no hospital, não sabem nada de seus familiares. Mas ele lhe dá chá e pão com manteiga. Ela cuida dele.

Entramos na sala onde se comemora o aniversário.

Observo as amplas mesas iluminadas com velas. Num canto, o cenário para a orquestra. As autoridades locais e os médicos no centro do recinto e, sentados nas bordas, os diversos funcionários administrativos. As enfermeiras e enfermeiros servem a comida. É inevitável que minha cabeça se encha de pensamentos. Junto a Paz Errázuriz, sequer falamos sobre a situação. Sentadas uma ao lado da outra, percebo que estamos atravessadas por sensações semelhantes. Sensações tão evidentes que nem vale a pena discutir sobre elas. Agora estamos almoçando no hospital, participando de uma festa que não nos pertence. Convidadas de pedra.

Os funcionários e as autoridades não demonstram alegria, existe algo terrivelmente esquivo nessa comemoração, como se uma fração de segundo tivesse descompassado o mecanismo de um relógio de corda. Não se falam, nem se olham. Comem em meio a um silêncio que poderia ser interpretado de distintas maneiras. Atrás, um grupo de funcionários jovens tenta inutilmente mudar o tom da reunião, ensaiam gritos, ensaiam diversas piadas. Mas é em vão, não conseguem sequer um sorriso do setor no qual estamos sentadas. Talvez mais tarde, quando os músicos chegarem, quando nós, as forasteiras da festa, já estivermos de novo subindo e descendo escadas ou momentaneamente sentadas nos pátios; essas caras, as faces de todos os funcionários, entrem na festa, se alegrem um pouquinho e eles riam como companheiros, como funcionários públicos que comemoram o aniversário de seu trabalho, e se esqueçam, ao longo dessas horas, que representam o Estado para atender esses pacientes crônicos que já não têm nenhuma saída. Esses numerosos pacientes que não se sabe mais por qual distante, incrível entrada chegaram ao recinto rural. Talvez aconteça dessa forma, ou talvez essa festa também não tenha o menor destino. Paz Errázuriz e eu nos levantamos prematuramente da mesa. Enquanto deixamos a sala, a luz nos abre uma nova dimensão. Sem a menor discórdia, fico satisfeita em deixar para trás esse quadro humano que escolheu representar uma das funções mais complexas, a de guardiões da clausura psiquiátrica. Eles são os zeladores dessa misteriosa desordem simbólica que toda a esplendorosa ciência médica ainda não consegue decifrar. Saímos em direção à luz e ali nos esperam, sim, Pedro com Margarita, María com Ismael, Rosario com Juan, Carmen com Fernando... Nos esperam e o que realmente estão esperando é que a lente de Paz Errázuriz os capture em seus únicos momentos sagrados.

Estamos no quintal.

Não é um quintal, é uma grande extensão de terreno que, na frente, apresenta jardins bem cuidados. Atrás, posso ver uma plantação de laranjeiras. Tenho no bolso duas laranjas presenteadas por Juana, por Aníbal. Um mimo que me foi entregue pelos seres mais desprovidos da terra. Me presentearam duas laranjas arrancadas de um impressionante código de honra que tenta por todos os meios evitar a mais extrema humilhação corporal; erradicar a fome. Pelo menos, erradicar a fome no interior desse extenso território mental e físico, marcado por tantas, incontáveis privações.

A tarde avança pacificamente.

Continuamos divagando no quintal, sentadas na borda de uma pequena vala. Permaneço colada a duas mulheres que se estreitam, uma ao meu braço e outra à minha perna direita. Observo que Paz Errázuriz também tem as suas filhas fiéis. Não conversamos. Simplesmente estamos sentadas, recebendo o sol do inverno entre o murmúrio dos pacientes que nos rodeiam. As mulheres que se apoderaram do meu lado direito exigem que, a cada certo tempo, eu as olhe, e quando o faço me entregam um sorriso pleno e glorioso, ao passo que o “mãezinha” se torna cada vez mais cotidiano para mim, cada vez mais natural, e eu digo que sim, que claro, que se comportem, que não tenho cigarros, que o sol da tarde está quentinho. Digo à senhora que se abraça à minha perna e que tem uma carinha redonda, assim, como um desenho da lua cheia. Ricardo e Isabel se olham, dão as mãos, ela fica brava, o empurra, ele pede meus óculos emprestados, os coloca. Isabel agora dá risada e o observa, enquanto Ricardo, muito concentrado, levanta seu rosto em direção ao céu e fica ensimesmado, solitário, como se fosse um navegante noturno que estivesse contando as estrelas.

Temos que voltar a Santiago. A luz que nos acompanhou durante o dia todo está baixando. Paz Errázuriz é quem faz o ritual de despedida. Pega sua câmera e nela vejo estalar o amor por suas imagens. Sou a testemunha de uma sessão de fotos comovente na qual Paz, com extrema delicadeza, vai de grupo em grupo, atende aos mais diversos pedidos, permite o fluxo das múltiplas, inesperadas poses, como se tivesse sido contratada para um casamento no qual todos os convidados fossem os padrinhos ou os noivos, ou a criança protagonista de um batizado. Paz Errázuriz converte seu olho em um dom para os asilados. Com seu olhar fotográfico, os presenteia com a certeza de suas imagens. Quando captura suas poses, confirma a relevância de suas figuras, quando lhes sorri, reconhece neles o divino em suas posturas corporais. Quando se inclina buscando o ângulo, lhes dedica todo o seu profissionalismo.

Mas temos que voltar a Santiago.

Será uma viagem silenciosa. Quase não trocaremos palavra. A paisagem, que tanto me impressionou nas primeiras horas da manhã, passará em vão ao entardecer. Pensarei no amor. Não pensarei no amor; o que me ocupará será esse amor que flui, se lança, se dispersa no interior baldio de um hospital público. Recordarei que, há um ano atrás, quando conversávamos no México, Paz Errázuriz me contou sobre esse trabalho de muito tempo, que fazia retratos dos pacientes apaixonados do hospital de Putaendo. Sentirei que faz um ano inteiro que essas palavras dão voltas em minha cabeça e, no entanto, ao empreender a viagem de volta, irei silenciosa, vazia.

Voltarei à cidade presa ao manicômio da minha própria mente e depois caminharei muito tempo de um lado para o outro, subindo e descendo escadas, cambaleando entre corredores, atravessando pátios, carregando esses corpos num pedaço do meu cérebro. Irei de um lado para o outro levando esses corpos com a desventura e com a força de uma alma em pena.

*Este texto de Diamela Eltit é um fragmento do livro El infarto del alma, publicado originalmente em 1994, em uma parceria entre a escritora chilena e a fotógrafa Paz Errázuriz. A tradução para o português foi realizada por Raquel Dommarco Pedrão para a edição número 4 da revista brasileira Puñado, que publica textos de autoras latino-americanas e caribenhas contemporâneas. A edição é de Laura Del Rey; e a revisão, de Aline Caixeta Rodrigues. Agradecemos à autora, à tradutora e à editora Incompleta pela cedência deste texto.

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